terça-feira, maio 15, 2007

Faiati

Comigo conversava pouco, mas sempre me dava dinheiro pra comprar bala e geladinho no bar da vizinhança. Tinha uma risada gostosa, que soltava quando ouvia piadas sacanas. E era a pura vaidade: até ser internado, sempre que acordava ia direto para o banheiro fazer a barba e pentear os cabelos, muito espessos, para trás. Por causa deles, ganhou o apelido de “Cabeleira”. As unhas sempre feitas com esmalte base. De feitio, o puro brasileiro: filho de alemã com africano, porte alto, forte. Tinha parecenças com Adoniran Barbosa e com o cantor Orlando Silva – foi por causa deste que chamou a atenção da minha avó.

Quando meu avô morreu, todos os barcos desceram na ilha. E, aonde não havia água, ele se afogou. Uma multidão adolescente andava entorpecida pelas ruas de barro, no lamaçal criado pelas minhas lágrimas. O sol castigava nossos couros nus, enquanto nas cores esverdeadas da casa de saúde, minha mãe vestia o falecido já duro, pele de cera, estirado numa maca de metal. Nenhum outro da família teve a mesma coragem.

O velho era alfaiate, eu era formando do ensino médio. Paletó alinhado, branco, alta malandragem. Alcoólatra de plantão, tirava o dele nos meses de festa de gala, casamento, quando a clientela queria se encher de garbo. Tinha aprendido o oficio de um mestre da época e trabalhava em negócio próprio, costurando as fazendas, auxiliado por vovó.

Por décadas ele abusou da marvada, mas não foi a moradia na bebida que o matou. Foram os pulmões que se estragaram de tanto incensar Malboro. A casa que habitava fedia à fumaça e as bitucas ficavam empilhadas por todos os lados. Tinham até estação de férias, boiando na privada. Eram três maços por dia, num vício irremediável. De repente, o corpo devolveu os maltratos.

Estávamos na Ilha do Mel. Propósito de celebrar três anos enfrentando preparação pra prova vestibular. Fui pra lá e deixei meu avô encamado, fraquinho, Hospital Oswaldo Cruz. Estava sozinho não: esposa, seis filhos, oito netos. Todos apreensivos. Noite que ele morreu tive lapso de choro, motivo que só desconfiava, muita quilometragem de distância. Voz triste telefônica dos pais disfarçando, querendo-não-querendo revelar.

Eu também não estava só. Mais cem jovens comigo ali e eu me sentia com ninguém, ponto e vírgula sem texto depois. Viagem de começo bêbeda, cerveja parou de rolar garganta minha abaixo, o gosto encruou, o torpor virou tormenta. Fui enfrentando dia-a-dia de praia e areia com pergunta de “quê foi” dos outros, querendo motivo da melancolia.

Na volta, desilhado, o vô já estava baixo de terra. Fui só é ver a missa do sétimo dia, coisa que nem-num me tocou. Acho que nessa hora deixei minha tristeza lá pra lá. Embalei, feito que o Faiati fazia, num choro feliz de Pixinguinha.

Ps.: Minha avó foi fazer verão na praia de Peruíbe e a Alfaitaria, lá na Vila Nova York (na leste), virou salão de cabeleireiro.