quinta-feira, setembro 16, 2010

Alumiança

O pranto da esfera lunar me inclina de ser luz. Meto a cabeça pela janela e vejo o Seu Henrique encostado de viés na parede, vendo as pessoas passarem. Elas cumprimentam o velho com aceno de mão e sorriso (ás vezes um pouco forçado) e continuam suas andanças. Do outro lado da rua, Irene vai correndo, entrando em casa pra apertar o interruptor do rio, que começa a correr, grosso e gelado.

A calmaria de começo de noite me lembra o colo dela.

Vizinha Chica, que gosta de novela, bota o som do aparelho bem alto por causa da mãe que está prejudicada das audições. Os diálogos dos de dentro da tela ecoam e invadem a rua, vêm pelas janelas, escancaradas pra refrescar o tempo quente, e cutucam o fundo do ouvido da gente, como pra nos esfomear de ver a história. "Tô bem, aqui, na minha nadança!" , penso pro Coronel Antônio Bento, personagem de uma das tramas.

Fico no parapeito, parado, observando o corre-corre.

Me ocorre de pensar em ser árvore, feito li num livro de poesia. Trabalhei a semana inteira e nesse tempo todo, a amoreira ficou ali: divertida e refestelada. Irene me disse que deve ser chato ser árvore. Que eu me inclinava mais pra ser luz. "Ara, menina, e árvore não se alimenta de luz, não? Eu ia terminar por ser árvore no final das contas!".

Irene é do mundo. Que é imundo. Mas Irene é estrela, é do mundo lá do alto. Feito Manoel, meu irmão que já se foi. Ela é que guarda a chave de ter rio ou não. Ela me faz rir e quando eu falo que eu rio ela faz: chuá!

É o colo de Irene que me lembra o começo da noite.

Irene me põe no mundo. É ela quem me pari em gente, cada vez que eu tô perdido em luz. Ela diz, que um pouco de matéria não faz mal pra ninguém, e me traz de volta por entre suas pernas.

Ás vezes eu esqueço que Irene é do mundo e desejo que ela seja só minha. "Dá não."

Eu só sei ser meu mesmo. Mesmo em luz, só ilumino minha própria arvrinha, que é a que eu hei de ser um dia. Irene tenta me espalhar pro mundo, mas aí eu despedaço todo.

Grito alto da janela: "Irene, Irene, vem me dar seu colo, vem?" Ela sorri feito alegria e se vira pra dar de comer pro Seu Henrique, que é desacorçoado do braço direito. A lua vai subindo mais e mais no céu, e começa a serenar tristeza na minha cabeça.

Vou me alumiando de pouco em pouco, bem por inclinação mesmo, e quando chega minha hora de ter Irene, viro fio de luz refletido em teia de aranha. Ela me desenrola dos seus cabelos e me sopra no vento. Sussurra com bico de beijo: "Vai enroscar n'alguma arvrinha, vai. Vai, minha pequena alumiança, pois vá, pois vá." E corre um choro no rosto dela, mas eu não tenho mais dedos pra colher a lágrima.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Chovendinho

Cada pedaço de mim

Um par de nuvens se encontrava no céu formando uma massa grande e monstruosa.

- Quando tem dessas, filho, é que vem chuva forte.

Mandou a molecada recolher os lençóis que Amanda tinha passado a manhã estendendo. O cachorro, um babucho mais grisalho do que preto, havia latido o dia inteiro, mas silenciara com a escuridão. O suco de melancia na geladeira estava pra azedar.

- Pai, como é que é ser feliz?

- É ter comida pra comer, filho.

- Só isso?

- Tudo isso.

Nunca tinha nevado, mas os primeiros flocos de neve começaram a cair. De princípio acharam que eram cinzas da queima da cana. Depois foram vendo que era mais feito o sorvete da venda do Seu Ademar. Chamou as crianças pra dentro, que de repente fez frio.

- Pai, tá chovendo guloseima?

- Não sei filho, mas se enrola nos panos que tá esfriando.

Amanda chegou carregando dois baldes de água do poço. Cumprimentou o marido com um abraço gostoso e fez festa na cabeça de cada uma das crianças. Tava com o bolso cheio de rapadura que a Dona Zenaide tinha mandado pros menino comê.

- Viu a neve? - o homem perguntou.

- Se vi! - ela respondeu.

Na casa lá, não tinha TV não. O cão dormia numa cabaninha feita com madeira de caixote de feira.

- E vai dar colheita com esse sorvete todo chovendinho do céu?

- Não sei não, Manda, pessoal do sul diz que queima tudo as plantação.

- E agora?

- Agora? Me dá um bocado dessa rapadura que eu tô cuma querência danada.

Em cima da mesa, com uma faca grande, ela dividiu a rapadura em sete, jogou um pedaço, o menor, pro cão, e o resto dividiu pela família. Marido, quatro crianças e ela. As flor do jarro de barro tavam caidinhas. Tinha antúrio e copo-de-leite. Murchas.

O menorzinho dos meninos resolveu milagrear. Ainda masmordendo a rapadura entre dentes, abriu sorriso com olhos brilhantes e pôs o sol pra nascer den'do'quar' onde dormiam. Era solzinho só, que o de verdade nem num caberia.

Esse dia aí era sábado, e o da pergunta - que era um dos do meio - foi dormir pensando que felicidade não era só comida, tinha que tinha de ser algo mais.